sábado, 16 de novembro de 2019

Resenha: Idade Mídia Evangélica no Brasil

MORAES, Gerson Leite. Idade mídia evangélica no Brasil. São Paulo, Fonte Editorial, 2010.

O livro ora resenhado foi escrito com o intuito de analisar o poder midiático da igreja evangélica Igreja Internacional da Graça de Deus liderada pelo Missionário R.R Soares e a relação da igreja, na figura do missionário, com a política. O autor faz um apanhado histórico da mídia e seu desenvolvimento e como isso influenciou a sociedade ao longo dos anos e como ela continua a exercer forte influência na sociedade hodierna. Hoje não se pode falar em modernidade sem falar em mídia e muito menos se pode falar em modernidade sem falar em religiosidade e autor nos mostra como a mídia esteve vinculada aos interesses religiosos. Fato é que a mídia, em sua forma impressa, que “Em 1501 o Papa Alexandre VI tentou estabelecer um sistema de censura mais rigoroso e abrangente, proibindo a publicação de qualquer livro sem a autorização do poder eclesiástico [...]” (p. 27) e a preocupação aqui era a disseminação de conhecimento que seria contra os interesses da ICAR, mas o que fica evidente aqui é o poder de atuação da mídia que pode ser usada para diversos fins – tanto para o bem quanto para o mal, como manipulação de informação, ou o que conhecemos hodiernamente como fake news – evidenciado pela tentativa de exercer um controle sobre ela. Toda essa introdução sobre a importância da mídia e o seu poder nos serve de subsídio para poder entender a tese principal do autor que é a de analisar o porquê do interesse na mídia e seus meios, o que a IIGD fez para chegar onde chegou e o que está fazendo para se manter e aumentar o seu poderio midiático.

Sendo a mídia uma peça fundamental para a ampliação e manutenção do poder no campo político, o autor defende que após a quebra do monopólio de concessões de rádio e TV em 1988, houve um significativo aumento no interesse dos evangélicos pela política, e o autor buscou também traçar um breve histórico da utilização das mídias de rádio e TV pelos evangélicos. Começando na década de quarenta, a Igreja Adventista foi a pioneira no uso o rádio, mas quem realmente ganhou tração e melhor aproveitou essa mídia foi o grupo pentecostal. Em 1951 desembarca no Brasil a Igreja do Evangelho Quadrangular que traz toda uma experiência que já é comum nos Estados Unidos, o uso do rádio, e a partir daí outras igrejas crescem usando esse meio e aproveitando bem a situação socioeconômica que estava transformando o Brasil na década de cinquenta. É também mérito da Igreja Adventista o uso da TV no meio evangélico, e outras igrejas pegaram carona nessa onda. Mas foi no final da década de setenta e início dos anos oitenta que os televangelistas passaram a investir em candidaturas políticas e um dos motivos desse interesse na política e principalmente pelo poder Legislativo, o autor escreve, “pode ser explicado porque a Constituição de 1988, no seu parágrafo 1º do Artigo 223, estendeu ao Congresso Nacional o poder de outorgar e também renovar concessões de rádio e televisão.” Fica claro aqui a real intenção do envolvimento dos evangélicos na política, isso é evidenciado, segundo o autor, pelo envolvimento desses parlamentares em comissões estratégicas como a CCTCI que é a comissão responsável pelas questões de outorga e renovação. Esse fato pode ser comprovado por dados; em 2004 o número de deputados da chamada Bancada Evangélica que eram titulares na CCTCI era de cinco deputados, no ano de 2004 esse número saltou para dez, o que nos mostra claramente qual é a verdadeira agenda evangélica na política, o autor deixa isso muito claro quando escreve: “lutar por concessões de rádio ou de televisão é uma questão tão estratégica quanto tentar converter novos fiéis para aumentar seus rebanhos.” (p. 57) É um ciclo, conseguir as concessões para aumentar seu poder midiático para ter mais penetração, atingir maior número de fiéis o que consequentemente aumentará o rebanho e esse rebanho servirá para perpetuar o poder da Igreja pois eles são facilmente convencidos a votar nos candidatos indicados pelos líderes religiosos pelo discurso maniqueísta comumente empregado na hora de pedir votos para os candidatos dos líderes evangélicos, e no caso do livro em específico o líder da IIGD.

Para analisar o tema proposto no livro, o autor além de fazer um apanhado histórico sobre o uso da mídia e sua influência em diversas áreas ao longo do tempo, como por exemplo sendo de suma importância para a Reforma Protestante, o autor também buscou analisar o passado do Missionário R.R Soares e também fez uso de diversos conceitos teóricos do campo da Sociologia como os conceitos de habitus, campo, agentes religiosos (sacerdote, profeta, mago), teoria da escolha racional etc. 

No capítulo um, após fazer uma breve introdução sobre o surgimento da mídia impressa, iniciando com a fabricação do papel na China no séc. II, a chegada dessa tecnologia na Europa, até o desenvolvimento da impressão por tipagem por volta do século VIII e as consequentes melhorias nos séculos seguintes, o autor prepara o terreno para o melhor entendimento do leitor sobre a influência dessa tecnologia na sociedade ao longo dos anos e como isso nos ajuda a entender essa relação da mídia com os evangélicos e a política. No princípio, os evangélicos não se preocupavam com assuntos de política mas percebendo a força que a mídia tem para alcançar um número maior de pessoas e a forma como conseguir acesso às mídias, os evangélicos começaram a entrar na política. Em 1988 a constituição estendeu ao Congresso Nacional o poder de outorgar e renovar concessões de rádio e TV e foi então aí que as igrejas evangélicas tomaram gosto pela política, tendo representantes no Congresso Nacional para lutar por concessões de rádio e de TV e levando em consideração o número crescente de evangélicos no Brasil, voto não faltaria e a estratégia usada pelos políticos evangélicos ou os apoiados pelas grandes igrejas é o discurso maniqueísta, que fica evidente na fala do missionário R.R Soares como relatado pelo autor na página 63, onde ele descreve uma fala do missionário em um evento da igreja IIGD em Campinas. Na ocasião o missionário diz que “contava com as orações dos irmãos para enfrentar uma série de provações que estavam levantando-se contra a RIT. Para enfrentar essas provações precisava que os fiéis apoiassem os candidatos [...]” (p. 63). Aqui fica claro o uso da tática do religioso que é fazer com que os fiéis – que conhecem bem os jargões evangélicos – acreditem que há uma batalha a ser travada e que é necessário ter representantes evangélicos no Congresso para frear essas investidas do “inimigo”. E em outra ocasião, registrada no livro, o autor nos apresenta um trecho de uma fala do R.R Soares, quando ele está negociando com um de seus representantes na política e ele fala como vai fazer para convencer os fiéis a votarem no político, ele diz “[...] Eu digo é de Jesus, é de Jesus...”. (p. 62). Novamente o velho discurso maniqueísta. E como sabemos qual a real intenção dos evangélicos na política? O autor fez um minucioso estudo sobre a atuação dos deputados evangélicos na Câmara dos Deputados e encontrou um padrão. Como já descrevi, a partir da Constituição de 1988, o Congresso passou a outorgar concessões de rádio e TV e a comissão responsável por essas concessões é a CCTCI. Interessante notar o aumento no interesse dos políticos evangélicos nessa comissão em particular. Em 2003, o número de titulares dessa comissão era de 51, destes 5 eram da chamada Bancada Evangélica. Em 2006, o número de deputados da Bancada Evangélica saltou para 10 membros titulares. E para corroborar com essa tese, temos algo bastante interessante em um registro da secretária do deputado Jorge Tadeu, quando ela diz “Ele [R.R. Soares] tem muito interesse em questões ligadas à sua TV e suas rádios”. (p. 66) O trecho foi retirado de uma entrevista com a secretária. Ao analisar as atividades do deputado Jorge Tadeu, o autor à princípio não encontrou indícios de participação deste na CCTCI, que é o órgão que trata destas questões, mas na entrevista com a secretária ficou evidente que o R.R Soares utilizava a influência do deputado com ministros afim de “desemperrar alguns processos sobre rádios pertencentes ao Missionário [...]” (p. 65) e em troca, o deputado ganhava exposição ao ser levado pelo missionário a grandes eventos da igreja e até aparições no Programa Show da Fé, exibido em horário nobre. 

No capítulo dois, após um breve relato da infância pobre de Romildo na pequena cidade Muniz Freire no Espírito Santo, sua conversão e mudança para o Rio em 1964, chegamos na parte onde é relatado um novo encontro religioso – o autor descreve que R.R Soares encontrava-se frio na fé nessa época -  que Romildo teve numa igreja que influenciará suas práticas religiosas futuras. A igreja em questão é uma igreja pentecostal liderada por um bispo canadense e onde há práticas de exorcismos, o que é algo novo para Romildo, já que ele vem de uma tradição reformada. É nesse ano também que Romildo tem contato com a literatura que marcará seu ministério, a teologia da prosperidade. Após seis anos na Igreja Nova Vida do bispo canadense McAslister, Romildo, já casado, sai desta igreja juntamente com seu cunhado Edir Macedo e vai para outra igreja, desta outra igreja ele novamente junto com seu cunhado saem e abrem aquela que ficou conhecida como Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Após conflitos internos, Romildo se desliga da IURD e funda a Igreja Internacional da Graça de Deus, e aproveitando esse contexto é interessante já introduzirmos alguns conceitos teóricos usados pelo autor para analisar essa problemática. O autor introduz o conceito de agentes religiosos – uma tipologia weberiana que foi usada por Bordieu -, que são: sacerdote, profeta e mago. “O sacerdote é o agente da continuidade da burocracia religiosa [...]”, o profeta é “[...] agente da descontinuidade, que, em momentos de crise, portanto, em situações extraordinárias, produzirá [..] uma nova concepção religiosa.” E aqui eu gostaria já de ligar esse conceito às ações de Romildo que juntamente com Edir Macedo saíram da Vida Nova para uma outra Igreja e depois desta para formar a igreja deles para em seguida romper com Macedo e abrir a sua própria igreja, uma ação tipicamente de profeta, ou seja, essa característica de rompimento para a criação de um novo movimento. Após a criação deste novo movimento, a figura do profeta dá lugar à do Sacerdote, o agente da continuidade e nesta nova fase R.R Soares busca estabelecer a ordem e “[...] perenizar um sistema de crenças e ritos sagrados.” (p. 102). E somente para efeito de elucidação, já que também mencionei esse agente, o Mago é definido como “o agente religioso prestador de serviços sagrados que atua de forma autônoma [...]” e este é geralmente combatido tanto pelo Profeta quanto pelo Sacerdote. E agora eu quero mencionar o importante conceito tratado no livro que é o conceito de campo, que é definido como “[...] um espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais, espaço de disputa e jogo de poder.” (p. 64) e a importância desse conceito para a análise da problemática é o fato de que o campo religioso é marcado por contendas e disputas entre os atores que compõem o campo religioso, ou seja, há uma rivalidade entre as igrejas na disputa pelos leigos, aqueles interessados nos bens de salvação administrados pelas igrejas. E nessa corrida, ganha quem tem mais capital religioso e para conseguir mais capital religioso é necessário usar meios para atingir esses leigos de forma mais eficaz. É aí que entra os meios de comunicação, principalmente o rádio e TV.

No capítulo três é analisado as mídias da IIGD, sua expansão para um conglomerado que abrange diversas mídias (rádio, tv e revistas e jornais impressos) e o projeto do missionário em construir uma rede de televisão que propague os valores evangélicos para “[...] livrar os evangélicos e futuros evangélicos das garras do mal.” (p. 139). Com esse discurso maniqueísta, R.R Soares busca ser uma opção ao conteúdo secular que é oferecido por outras emissoras e dentro de seu grupo midiático e aqui mais especificamente nos programas da RIT, há uma gama de programas que visam atender às expectativas de diferentes grupos. No programa Curso da Fé, o objetivo é “[...] ajudar as pessoas a compreender este assunto que para muitos é mistério – o ministério da fé.” (p. 146) e nesse programa o próprio missionário é o apresentador, ele faz exposições bíblicas mas usa uma linguagem muito simplista e tende a espiritualizar tudo, mas isso é devido ao seu público, composto em sua maioria (80%) por pessoas das classes C,D,E com baixo capital cultural. O autor faz uma comparação com as igrejas históricas que procuram promover estudos mais aprofundados, o missionário traz mensagens simplistas para atingir seu público, que de outra forma não compreenderia. Outro programa analisado foi o CLIPT RIT, “Um programa para quem curte música e vídeo clipes de qualidade.” (p. 150). Foi identificado um conteúdo apelativo que “[...] busca dramatizar situações do cotidiano, como alguém passando dificuldade no trabalho, [...] na vida familiar [...] bem como a mudança imediata após ler a Bíblia ou ir a uma igreja [...]” (p. 150) e, de acordo com o autor, “Essa dramatização de situações, aproximam os receptores da mensagem e os conduzem aos bens de salvação distribuídos pela agência de salvação, no caso a IIGD [...]” (p. 151). Na análise do programa Show da Fé – o que tornou a IIGD muito conhecida pela população brasileira – nota-se uma ênfase na supervalorização do testemunho e em decorrência disso o autor buscou entender como o testemunho dá credibilidade à oferta religiosa. Para responder essa questão, o autor aplicou a teoria da escolha relacional usando o axioma 2 da teoria da religião de Stark e Bainbridge, ele escreve “[a] teoria da escolha racional diz que os seres humanos buscam o que percebem ser recompensas e evitam o que percebem ser custos.” (p. 173), ou seja, tentando resumir o argumento da análise do autor de todos os axiomas citados no livro, o ser humano este em uma constante busca pela resolução de seus problemas mas ao mesmo tempo ele não quer perder tempo com tentativas, então aquilo que para ele parece ser um método testado – e isso é atestado através do testemunho – faz com que ele se convença da eficácia daquele método, e como aqui estamos falando dos bens de salvação administrados pela IIGD, ele acaba virando um “cliente”, e é esse o objetivo da IIGD, com todo seu discurso maniqueísta, atrair expectadores para suas programações, prendê-los nessas programações e expô-los aos produtos ali oferecidos, como ficou evidente no caso do CLIP RIT. Fica evidente aqui uma segunda agenda por trás do discurso de “defesa da família” ou de ser uma alternativa ao conteúdo destrutivo das emissores seculares, que é o objetivo de aumentar ainda mais seu poderio midiático, cativar essas pessoas e torna-la clientes.

No capítulo quarto e último do livro, o autor buscou analisar a influência do poder midiático da IIGD sobre outros grupos religiosos e em especial sobre os presbiterianos. Para isso o autor fez uma pesquisa de campo com um número pequeno de presbiterianos do interior do estado de São Paulo, por ser um número de amostragem pequeno, o autor deixa claro que não tem pretensões de estabelecer um padrão estatístico, tão somente quis analisar algumas marcas da força de penetração midiática da IIGD. Analisando os dados dos entrevistados, o autor percebeu que a estratégia do missionário tem surtido efeito pois ele conseguiu penetrar e atingir até o público das igrejas históricas, quando perguntado, cerca de 40% dos entrevistados disseram que assistiam o programa Show da Fé pelo menos uma vez por semana e do total dos entrevistados (entre os que assistiam apenas uma vez até os que assistiam mais vezes) 17,5% dos entrevistados disseram que já chegaram a assistir a alguma programação da RIT TV, que não é conhecida como a Band TV, canal que veicula o programa Show da Fé. Entre outros dados, fica claro de que a estratégia do missionário e o seu estilo mais palatável – muito diferente do estilo polêmico do Edir Macedo - atinge a um público que parece não perceber as diferenças teológicas entre sua denominação e aquela do missionário. Vale ressaltar também que 10% dos entrevistados já compraram produtos oferecidos durante a programação e 72,5% disseram que comprariam algum produto anunciado, mostrando que não há um preconceito denominacional, ponto para a estratégia do R.R Soares. Caminhando já para o final do livro duas coisas que chama a atenção é o conceito de dupla pertença e a questão da criação de uma identidade “evangélica”. A dupla pertença é a ideia de um indivíduo que está ligado formalmente à uma instituição através de batismo, profissão pública da fé e devoção de seu tempo às atividades da igreja, mas que busca complementar isso assistindo, por exemplo, a cultos na TV ou no rádio mesmo que seja de outras denominações ou igrejas. Falando em denominações, o autor pôde perceber que 82,5% dos entrevistados são alheios às reduções denominacionais e 80% podiam perceber diferenças em questões doutrinárias do R.R Soares mas não sabiam dizer quais. E isso nos leva ao segundo ponto que é a identidade evangélica. Entre os pastores e teólogos há claras distinções teológicas entre as diversas denominações, mas entre os fiéis isso não fica muito claro. Há certamente uma diferença entre o católico e o não católico e para preencher esse vácuo, em nome de uma identidade nacional, adotou-se o termo “evangélico” que abarca todos esses grupos, que apesar das diferenças teológicas, que de alguma forma têm um pouco da herança da reforma protestante. Interessante notar é que essa identidade evangélica é o que possibilita a sobrevivência tanto do R.R Soares quanto de outros players no mercado religioso evangélico no Brasil. E por último, o missionário R.R Soares como todo seu carisma, prédica monótona e “clean” tornou-se palatável para o público evangélico, seja ele histórico ou não e seu sucesso acabou influenciando outros televangelistas que copiaram seu modelo e um bom exemplo é o Valdomiro Santiago, que, apesar de ter vindo da IURD, adoto o estilo “Soares” de fazer televisão.

Como vimos ao longo dos quatro capítulos deste livro, o autor tratou de traçar as origens da mídia e as influências que a mídia exerceu ao longo dos séculos e como esta vêm sendo usada hoje no meio evangélico como uma ferramenta de expansão e perpetuação de poder. É inegável hoje que grupos evangélicos exercem grande influência na política nacional e isso se deve ao poder midiático que esses grupos conseguiram ao longo dos anos através do envolvimento na política com base na barganha. O autor desmitificou o discurso comumente utilizado pelos líderes religiosos para angariar votos, como o discurso maniqueísta de uma batalha travada pelas hostes do mau contra os valores da família e contra o povo de Deus, quando na realidade, uma vez no poder, a atuação dos políticos que têm ligação com estas igrejas é totalmente voltada para os interesses desses líderes religiosos.

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