domingo, 9 de junho de 2019

Bora tomar uma? Uma análise séria e exegética sobre o consumo de bebida alcoólica

Uma parte dos crentes ou tende pro legalismo [nada pode] ou pro liberalismo [tudo pode]. Um dos temas de bastante contradição é o da bebida alcoólica. É a posição de muitos pastores de que o crente não pode consumir bebida alcoólica, e são bem criativos em sua defesa. Vou tentar fazer uma análise com base bíblica [parece redundante isso, mas tem muitos que se baseiam em achismo], mostrando a inconsistência de certos argumentos.

Exposição seletiva

O primeiro e o mais desonesto é o que eu chamo de exposição seletiva, que consiste em selecionar somente aqueles versículos que dão suporte ao seu argumento, por exemplo, eu poderia pegar a primeira parte de Romanos 6:23 e dizer que o pecado mata, pois está escrito "o salário do pecado é a morte" e ao ignorar o contexto eu poderia levar meu interlocutor a um entendimento equivocado do que o que o autor quis nos ensinar.

Um exemplo bastante comum é este: "Não é próprio dos reis, ó Lemuel, não é próprio dos reis beber vinho, nem dos príncipes desejar bebida forte." (Pr. 31:4). Pegam um verso fora do seu contexto e falam que não pode beber porque "tá escrito", e acabam sendo desonestos ao não continuar a leitura dos versos seguintes. Está escrito mais a frente "Dai bebida forte aos que perecem e vinho, aos amargurados de espírito; para que bebam, e se esqueçam da sua pobreza [...]" (v. 6-7). Se eu estiver cansado de tanto ter trabalhado então eu devo beber para esquecer minha fadiga? Afinal eu não sou rei!

No antigo testamento a palavra vinho (Hb. יַיִן yayin #3196) é usada 141 vezes, então imagine você os vários contextos em que o vinho foi mencionado. É honesto então eu mencionar apenas um ou dois versos e sempre fora de seus respectivos contextos e dizer que aí está a verdade?

Ainda em Provérbios temos outra passagem que talvez seja usada para dizer que o crente não pode beber, e diz assim: "Quem ama os prazeres empobrecerá, quem ama o vinho e o azeite jamais enriquecerá." (Pv. 21:17). Que chocante! Seria trágico senão fosse irônico. Aqui fala de luxúria, tanto o vinho quanto o azeite (alguns comentaristas traduzem como unguento) eram itens caros (Jo 12:5), então temos que entender óleo e vinho nesse contexto, pois a bíblia não se contradiz (2 Tm 3:16-17). Vejamos que no Salmo 104:15 está escrito que "o vinho, que alegra o coração do homem, o azeite, que lhe dá brilho ao rosto [...]", se você for ler o salmo todo entenderá que o salmista está louvando a Deus pela sua criação. Eu não posso pegar um verso isolado e entender de uma forma e mais tarde ao encontrar um outro verso que "aparentemente" contradiga o verso anterior, lê-lo também de forma isolada, eu tenho que tentar harmonizar os dois e entendê-los em seu contexto, caso contrário teríamos uma teologia bem confusa. Já imaginou se tivéssemos que interpretar tudo o que Jesus falou nos evangelhos de forma literal? Todos seríamos cegos de um olho e só íamos comer carne moída porque não teríamos condições de usar um garfo e uma faca só com uma mão (Mt 5:29-30).

Alcoólatras no Antigo Testamento

Usei esse subtítulo bem chamativo por pura ironia, uma vez que alguns legalistas tacham os que defendem a opção do cristão de ingerir bebida alcoólica de "beberrões".

Pois bem, seguindo essa definição, o primeiro beberrão foi Abraão, pois ao término da batalha contra os quatro reis, Melquisedeque trás pão e vinho para Abraão (Gn. 14:18) e mais um pouco à frente conhecemos outro pé-de-cana; Isaque. Em Gênesis 27 lemos o relato da benção de Jacó. Isaque fala "Chega isso para perto de mim, para que eu coma da caça de meu filho; para que eu te abençoe. Chegou-lho, e ele comeu; trouxe-lhe também vinho, e ele bebeu." (Gn 27:15). Eita Isaque pinguço. Até o próprio Deus tinha prazer no vinho. Em Levítico 23:13 lemos "[...] e a sua libação será de vinho, a quarta parte de um him." Bom para mim não resta dúvida quanto à questão do vinho. Como está claro em várias passagens no Antigo Testamento, vemos homens de Deus saboreando essa delícia que é o vinho e também destrinchei aqui a falácia interpretativa do provérbios 21 e 31. Vamos agora para o Novo Testamento.

Novo Testamento

No NT temos três passagens bem esclarecedoras, e ao mesmo tempo com interpretações um tanto contraditórias. Vamos a elas. Duas dessas passagens se encontram na carta de Paulo ao seu filho na fé Timóteo. Em 1 Timóteo 3 Paulo trata das qualificações do bispos e dos diáconos, e a partir do verso dois lemos: "É necessário, portanto, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher, temperante, sóbrio, modesto, hospitaleiro, apto para ensinar, não dado ao vinho [...]" (v. 2-3). De acordo com dicionário online Dicio, o adjetivo dado, nesse contexto, significa "habituado a", ou seja, alguém habituado ao vinho [que bebe com frequência as vezes até ao estado de embriaguez, cf. Ef. 5:18]. Então fica claro aqui a intenção do autor, não é em dizer "não beba", pois se assim o fosse, ele teria escrito claramente. Atenção, se você tem uma versão da Bíblia de Estudo Pentecostal, eu te digo que a nota de rodapé para esse versículo está totalmente equivocada, o autor faz uma leitura enviesada da palavra Grega πάροινος (paroinos), pois fica evidente tanto no contexto quanto em outras passagens (1 Tm 5:23, Ef. 5:18) que não era a intenção do autor da carta proibir o consumo do vinho, como já falei antes. Outro ponto interessante é o background do autor dessa bíblia: Donald Stamps, um ex-nazareno, mas não dá pra falar sobre isso aqui.

"Por esta razão, não vos torneis insensatos, mas procurai compreender qual a vontade do Senhor. E não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito," (Ef. 5:18). Para o bom entendedor, poucas palavras bastam. É assim que eu resumo a explicação desse verso. Como deixei bem claro no parágrafo anterior, se fosse a intenção do autor ensinar ao cristão de que este não pode ingerir bebida alcoólica, ele assim o teria feito de forma clara e direta, não acha? O texto poderia ter dito "não bebais vinho", mas não foi isso que ele escreveu, então por que deveria eu interpretar o texto de outra maneira. Não há dúvidas aqui que a intenção do autor é a da exortação quanto à embriaguez e não ao ato de beber [socialmente].

Agora vamos analisar o texto de 1 Timóteo 5:23 onde Paulo fala pra Timóteo não beber somente água mas "usar um pouco de vinho". Há uma disputa sem fim sobre se o vinho em questão continha álcool ou não, mas pelos vários contextos bíblicos podemos entender que a bíblia fala claramente sobre o vinho como bebida alcoólica, pois não faz sentido falar "não se embriague de suco de caju", fazendo uma alusão ao texto de Efésios 5:18 como já explanei no parágrafo anterior. Então uma vez desmistificado esse mito vamos para a lógica argumentativa. Digamos que o vinho era a versão alcoólica e que Paulo fala para Timóteo misturá-lo com água. Acaso esse processo diminui a quantidade de álcool no vinho? Claro que não. Se você tem uma taça de vinho com 100ml da substância com uma graduação alcoólica de 10% [2], o fato de você adicionar 100ml de água na mistura e obter uma bebida de 200ml não alterará a graduação original que é de 10% de álcool sobre os 100ml de vinho, o que acontece é que agora você terá uma bebida com 200ml com um teor alcoólico de 5%, pois foi adicionado 100ml de uma substância não-alcoólica.

Considerações

Tenho amigos "legalistas", que é o padrão da Assembléia de Deus, e inclusive o meu pastor é contra o consumo de bebida alcoólica, que usam esses mesmos argumentos para dizerem que não podemos beber, mas como acabei de expor as escrituras de forma mais neutra possível, fica evidente que a bíblia não proíbe o consumo "social". Há também uma questão delicada que é o caso de ex-alcoólatras que se libertaram do vício e nesses casos é preferível a abstenção. Mas em casos normais, que é o caso da maioria, não creio que deva haver uma proibição [até porque não há base para isso]. Um irmão em Cristo em conversa comigo sobre o tema me contou que prefere a abstinência total, não por por uma questão legalística, mas por vontade própria mesmo.

O interessante é que se você fizer uma rápida pesquisa em sites e blogues sobre o tema, ao entrar em uma dessas páginas vai encontrar um padrão. Inicia-se o texto com os males causados pelo álcool, que o álcool é isso que é aquilo, que falam da possibilidade de virar um bebum, alcoólatra pinguço, e que isso pode causar acidentes, falam de estatísticas de acidentes de trânsito e no final vão falar apenas de versos que, à princípio, dão a ideia de que é pecado beber, mas espero que com essa exposição esse tema tenha ficado claro.

Por último, quero falar de uma outra consideração, a escandalização. Se você está na presença de um irmão "legalista", é preferível que você se abstenha de ingerir qualquer tipo de bebida alcoólica na presença dele, conforme aprendemos em 1 Co 8:13. Já fui convidado a sair com uns amigos da igreja, minha vontade de tomar um choppezinho era grande, porém sabendo a criação deles e que eles não se sentiriam confortáveis, eu preferi não tomar.

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