sábado, 23 de fevereiro de 2019

Gênesis 14

A organização desse texto é um pouco confusa para o leitor desavisado, eu vou organizar os pensamentos de forma mais lógica para facilitar nossa leitura e aprendizado.

A primeira perícope¹ do capítulo começa falando que os reis X, Y, Z entraram em guerra contra os reis A, B, C e só no verso 4 vemos o motivo desta guerra e os versos 5 e 7 introduzem outra batalha cujo contexto não foi previamente mencionado. O mais lógico, cronologicamente falando, seria introduzir o contexto e discorrer sobre os desdobramentos.

Então vamos lá. Os reis mencionados no verso 2 eram vassalos do rei de Elão, Quedorlaomer e por 12 anos eles lhe eram submissos e pagavam tributos, só que chegou no décimo terceiro anos, eles deram um basta e se rebelaram contra o rei Quedorlaomer. No décimo quarto ano Quedorlaomer preparou uma incursão para castigar os desobedientes vassalos, e os povos que ficavam no caminho foram devastados e pilhados [versos 5 ao 7]. Os reis de Sodoma, Gomorra e cia então se prepararam no vale de Sidim, porém a aliança do rei de Elão, Quedolaomer, venceu a aliança dos reis de Sodoma e Gormora e estes fugindo caíram nos poços de betume que tinha naquela região. Parte caiu nos poços e parte fugiu pras montanhas.
A cidade de Sodoma é então saqueada, cativos levados e no meio desses cativos estava o sobrinho de Abrão; Ló.

Alguém escapou e foi avisar Abrão. Abrão então juntou alguns dos seus homens treinados e foi pelejar contra Quedorlaomer.
Abrão foi vitorioso nessa peleja, recuperou seu sobrinho e seus bens bem como os bens e os cativos dos reis que foram vencidos [do verso 2].

Voltando da peleja Abrão encontra a figura mística de Melquisedeque, este abençoa a Abrão e Abrão lhe dá o dízimo dos despojos. O rei de Sodoma também encontra Abrão e ele fala pra Abrão que ele pode ficar com os seus bens, devolvendo apenas o pessoal, mas Abrão fala que não quer os bens recuperados para que depois ninguém venha alegar que enriqueceu Abrão.

Agora vamos para algumas curiosidades do texto

Conforme falei, o texto não foi escrito de uma forma cronológica, então com uma leitura superficial o entendimento se torna difícil, pois no verso 1 ao 2 temos a introdução da narrativa, no verso 3 o texto fala que os reis de Sodoma, Gomorra e cia se preparam para a batalha, mas a batalha contra eles só é detalhada nos versos do 8-9, então faz-se necessária a leitura cuidadosa do texto.

Esse texto, como argumentam muitos, está diretamente ligado com o capítulo anterior, pois Ló foi-se chegando a cidade de Sodoma e acabou envolvido nessa briga de poderes, uma vez que ele estava vivendo em Sodoma na época da invasão (v.12). Uns até pregam que a ganância de Ló de querer as melhores terras fez com que ele tivesse esse desfecho terrível. Mas teorias à parte vamos ao entendimento do texto.

Abrão deu o dízimo de quê se ele falou que não queria os bens do rei de Sodoma?

Essa pode não ser sua dúvida, mas para mim não ficou claro numa primeira leitura. No verso 11 está escrito que os vencedores saquearam todos os bens de Sodoma, no verso 16 está escrito que Abrão recuperou todos os bens, o verso 20 diz que Abrão deu o dízimo de tudo, o que me deixou confuso à princípio foi porque no verso 21 quando o rei de Sodoma disse a Abrão que ele poderia ficar com os bens mas devolvesse os homens e Abrão disse que não queria eu pensei, de que então Abrão deu o dízimo? Abrão deu o dízimo dos despojos do reis derrotados que vieram com Quedorlaomer, ou seja, ele recuperou os bens que haviam sido tomados, esses bens ele devolveu para seus donos originais, mas ficou com os despojos que os reis que vieram com o rei de Elão trouxeram² e deu a décima parte desses despojos para Melquisedeque.

Porque Abrão deu o dízimo a Melquisedeque?

Eu não vou entrar na discussão da [validade] ou não do dízimo, eu apenas vou fazer um comentário histórico-cultural acerca deste ato de Abrão. Como vemos na história, a bíblia não nos mostra Melquisedeque pedindo algo a Abrão, pelo contrário, após abençoar Abrão, e ele reconhecendo ali a figura sacerdotal de Melquisedeque, Abrão lhe deu de tudo o dízimo.

Mas aí vem a pergunta, o que levou Abrão a dar o dízimo a Melck e como ele chegou a esse valor de um décimo dos despojos?

Era costume na época consagrar parte dos despojos de guerra aos deuses, pois os povos creditavam a vitória a ajuda divina dos deuses, ou seja, eles acreditavam que venceram por que os deuses os ajudaram. Prova? Provo sim. No livro Life in Ancient Egypt de Adolf Erman, o autor diz que parte da renda, por assim dizer, dos povos egípcios vinham de despojos de guerra e que como eles creditavam a vitória aos deuses, parte dos despojos eram consagrados aos deuses; ao templo. Os tesouros ficavam guardados na tesouraria do templo. Também na Caldéia a prática de divisão dos despojos de guerra com os deuses [aos seus templos, administrados pelos sacerdotes] era comum, além de metais, parte da terra conquistada era dedicada aos deuses bem como os escravos capturados que serviam para cultivar a terra. (Down of civilization, p. 706).

Vemos isso também na bíblia, em 1 Samuel 4:5-8 quando a arca da aliança foi trazida de Siló para a região de Ébenezer e os israelitas davam grandes brados [tipo tropa de elite: agora o bicho vai pegar], os filisteus ouvindo murmuravam entre si que eram os deuses de israel que haviam chegado para ajudá-los. No verso 8 está escrito "Ai de nós! Quem nos livrará das mãos destes grandiosos deuses? [...]". Vemos tanto no livro de Samuel quanto aqui, o próprio Melquisedeque quando ele diz ''[...] E bendito seja o Deus Altíssimo que entregou seus inimigos [de Abrão] em suas mãos.".


¹perícope é uma porção do texto, não limitada ao versículo. É um trecho que segue uma sequência de pensamento.
²Poole, Benson

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